segunda-feira, 14 de janeiro de 2013


O real e a superação do místico

          Já com a sua passagem sobre a vida profissional quase resolvida, o velho senhor retornava ao seu lar após um dia desgastante. “É, não sou mais nenhum guri!...” pensou no interior do carro de luxo, alheio inclusive à presença do motorista. Estava se direcionando ao seu lar, para passar uma noite inteira sozinho... sua esposa resolveu viajar após uma grande discussão de casamento; e, mesmo com o contexto familiar em decadência, só uma preocupação fazia parte da mentalidade de nosso personagem: “Estou sem herdeiros, não tenho para quem deixar a minha empresa!...” e a convicção o deixou revoltado com a sua situação de derrota indelével. Sua ira se expandiu assim que recordou de seu único filho e a sua indiferença para com os negócios “da família”...
          O pensamento supérfluo do senhor o fez esquecer que estava indo para a sua residência, e se percebeu de tal corolário quando o carro parou. Saiu do veículo com o peso habitual, o seu corpo era uma armadura difícil de ser carregada!... fez questão de dispensar o motorista e os demais empregados e ficar sozinho na pequena mansão (...). Foi até a sua cozinha e abriu a sua geladeira: alternativas para se alimentar não lhe faltavam. Ignorou a comida, sua cabeça rodava em um princípio que desconhecia a fome... começou a procurar na geladeira e depois no armário: conseguiu então achar a sua velha garrafa de uísque. Serviu-se de uma dose sem gelo e a tomou em um só gole!... era o elixir mais amargo de sua existência. Pegou a garrafa, o copo e foi até o seu quarto; tentou dormir, mas foi em vão!
          A luz apagada; não, não era apenas uma escuridão... era uma matéria que estava no ar e que não deixava o empresário dormir. Acendeu a luz e lá estavam eles, os espectros que se alimentavam com as suas falhas humanas: os políticos que lhe eram subalternos, os empregados que havia demitido e a frieza diante da presença de seus próprios familiares. Todos o julgavam com um silêncio mais forte e mais eloquente do que qualquer palavra... foi quando a razão retornou ao seu espírito: “Mas o que eu fiz comigo mesmo?!” pensou em uma questão que finalmente conseguiu responder (pois começava o seu processo de limpeza interna...).
          O local em que outrora passava um tempo agradável de sono tranquilo e boas volúpias com a sua esposa, agora era o abrigo de uma solidão amarga. Respirou fundo, tentou achar alguma possibilidade na programação da televisão... mas o empresário, obviamente, foi infeliz em tal busca utópica. Frustrado, indiferentes aos “atrativos” de seu exterior e com o forte peso de sua idade (a consciência de que a morte estava por perto!...); o senhor saiu do quarto e ignorou os espelhos que estavam na sua casa (questionava, com ódio, a existência deles...). Enfim, estava distante de sua cela e diante de grades e câmeras de segurança!... olhou para a garagem: poderia abri-la, pegar um de seus cinco carros de luxo e dirigir pela cidade (para romper o seu próprio cotidiano...). Mas as ruas eram “perigosas” (e desertas!) durante a madrugada... outra hipótese que foi totalmente descartada!
          E a mente de nosso personagem era demasiado limitada, de modo que foi incapaz de perceber maiores possibilidades diante da opulência (e sempre foi incapaz de perceber que produziu a sua própria falta através de suas aquisições materiais...). Foi quando lhe surgiu uma mentalidade, no mínimo, estranha: “Os problemas de minha natureza só podem ser resolvidos com a própria natureza!” pensou com uma convicção doentia. E o que haveria de mais natural do que a água? o nosso personagem resolveu se banhar em sua piscina... encostou a sua cabeça sobre a borda, sentou-se na escada. Começou a observar toda a construção daquele lago artificial (com as suas voltas, uma pequena correnteza e até uma cachoeira!...). “Fantástico é o que o homem pode construir!” disse a si mesmo e começou a imaginar o que a tecnologia construiu e o que haverá de construir (ele realmente ficava admirando o nosso lixo!...). E depois a dúvida maldita retornou com o seu, recém chegado, niilismo material...
          - Para que tudo isso?! que utilidade existe nas construções e invenções da engenharia humana?!... – falou como se realmente alguém estivesse a escutá-lo. E continuou ainda com a sua oratória excêntrica: - e eu: por que construí tanto para não ter absolutamente nada?! afastei a minha esposa e o meu filho de minha companhia para seguir, de forma cega!, a minha fria ganância ... – e novamente começou a sentir a derrota indelével. Tentava fechar os olhos, mas sempre acordava e se percebia sozinho (apenas o velho uísque a acompanhá-lo...).
          Com o passar de mais alguns minutos (que lhe eram quase intermináveis!...), o empresário se retirou da piscina e resolveu passear um pouco por seu pátio demasiado extenso. Seu “lar” era análogo a qualquer presídio, os seus passos eram sempre regulados pela sua posição social... e o senhor estava abraçado a uma vergonha oposta à ordem da miopia contemporânea. Percebeu que apenas tinha, mas ainda não era!... e foi uma totalidade avessa à interpretação do senso comum: pois a imagem de nosso personagem estava sempre nos jornais e nas principais revistas sociais (...). Imaginou então uma família pobre, unida em uma mesa para fazer uma refeição trivial e no meio da conversa do jantar alguém mostrar a foto do empresário e pronunciar: “Eis aqui um homem de sorte!”. E a vergonha consumia ainda mais o milionário...
          “Estranho é o modo como a solidão me faz inverter a lógica de minha mentalidade...” pensou e tentou se esconder atrás de alguma lógica científica, mas o processo gerou um resultado nulo. Tem certas coisas que superam a trivial “racionalidade”... e a noite continuou o seu rumo até o empresário se embriagar por completo e fechar os seus olhos por umas duas ou três horas... se levantou com o nascimento do sol e seguiu o seu itinerário de sempre antes de se dirigir à sua empresa. Durante o período de seu trabalho, a sua esposa ligou e se admitiu “arrependida” (queria continuar com o seu casamento, mesmo sabendo que o seu marido jamais haveria de mudar...) e deu a boa notícia: o filho do casal também estaria em casa na hora do jantar.
          Um sorriso sincero se apoderou da face de nosso personagem; mas o seu semblante era o resultado de seu sentimento de vitória (pois, análoga à sua empresa e os seus funcionários, sua família admitia em atos que lhe era totalmente submissa!...), o senhor nem chegava a cogitar os questionamentos da noite anterior... era uma parte de sua biografia a ser esquecida. Não, o empresário não ignorava apenas o passar de uma lua; na verdade, ele ignorou a missão mais nobre que qualquer indivíduo carrega consigo assim que nasce.  

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