O real e a superação do místico
Já com a sua passagem sobre a vida
profissional quase resolvida, o velho senhor retornava ao seu lar após um dia
desgastante. “É, não sou mais nenhum guri!...” pensou no interior do carro de
luxo, alheio inclusive à presença do motorista. Estava se direcionando ao seu
lar, para passar uma noite inteira sozinho... sua esposa resolveu viajar após
uma grande discussão de casamento; e, mesmo com o contexto familiar em
decadência, só uma preocupação fazia parte da mentalidade de nosso personagem: “Estou
sem herdeiros, não tenho para quem deixar a minha empresa!...” e a convicção o
deixou revoltado com a sua situação de derrota indelével. Sua ira se expandiu
assim que recordou de seu único filho e a sua indiferença para com os negócios
“da família”...
O pensamento supérfluo do senhor o
fez esquecer que estava indo para a sua residência, e se percebeu de tal
corolário quando o carro parou. Saiu do veículo com o peso habitual, o seu
corpo era uma armadura difícil de ser carregada!... fez questão de dispensar o
motorista e os demais empregados e ficar sozinho na pequena mansão (...). Foi
até a sua cozinha e abriu a sua geladeira: alternativas para se alimentar não
lhe faltavam. Ignorou a comida, sua cabeça rodava em um princípio que
desconhecia a fome... começou a procurar na geladeira e depois no armário:
conseguiu então achar a sua velha garrafa de uísque. Serviu-se de uma dose sem
gelo e a tomou em um só gole!... era o elixir mais amargo de sua existência.
Pegou a garrafa, o copo e foi até o seu quarto; tentou dormir, mas foi em vão!
A luz apagada; não, não era apenas
uma escuridão... era uma matéria que estava no ar e que não deixava o
empresário dormir. Acendeu a luz e lá estavam eles, os espectros que se
alimentavam com as suas falhas humanas: os políticos que lhe eram subalternos,
os empregados que havia demitido e a frieza diante da presença de seus próprios
familiares. Todos o julgavam com um silêncio mais forte e mais eloquente do que
qualquer palavra... foi quando a razão retornou ao seu espírito: “Mas o que eu
fiz comigo mesmo?!” pensou em uma questão que finalmente conseguiu responder
(pois começava o seu processo de limpeza interna...).
O local em que outrora passava um
tempo agradável de sono tranquilo e boas volúpias com a sua esposa, agora era o
abrigo de uma solidão amarga. Respirou fundo, tentou achar alguma possibilidade
na programação da televisão... mas o empresário, obviamente, foi infeliz em tal
busca utópica. Frustrado, indiferentes aos “atrativos” de seu exterior e com o
forte peso de sua idade (a consciência de que a morte estava por perto!...); o
senhor saiu do quarto e ignorou os espelhos que estavam na sua casa
(questionava, com ódio, a existência deles...). Enfim, estava distante de sua
cela e diante de grades e câmeras de segurança!... olhou para a garagem:
poderia abri-la, pegar um de seus cinco carros de luxo e dirigir pela cidade
(para romper o seu próprio cotidiano...). Mas as ruas eram “perigosas” (e
desertas!) durante a madrugada... outra hipótese que foi totalmente descartada!
E a mente de nosso personagem era
demasiado limitada, de modo que foi incapaz de perceber maiores possibilidades
diante da opulência (e sempre foi incapaz de perceber que produziu a sua
própria falta através de suas aquisições materiais...). Foi quando lhe surgiu
uma mentalidade, no mínimo, estranha: “Os problemas de minha natureza só podem
ser resolvidos com a própria natureza!” pensou com uma convicção doentia. E o
que haveria de mais natural do que a água? o nosso personagem resolveu se
banhar em sua piscina... encostou a sua cabeça sobre a borda, sentou-se na
escada. Começou a observar toda a construção daquele lago artificial (com as
suas voltas, uma pequena correnteza e até uma cachoeira!...). “Fantástico é o
que o homem pode construir!” disse a si mesmo e começou a imaginar o que a
tecnologia construiu e o que haverá de construir (ele realmente ficava
admirando o nosso lixo!...). E depois a dúvida maldita retornou com o seu,
recém chegado, niilismo material...
- Para que tudo isso?! que utilidade
existe nas construções e invenções da engenharia humana?!... – falou como se
realmente alguém estivesse a escutá-lo. E continuou ainda com a sua oratória
excêntrica: - e eu: por que construí tanto para não ter absolutamente nada?!
afastei a minha esposa e o meu filho de minha companhia para seguir, de forma
cega!, a minha fria ganância ... – e novamente começou a sentir a derrota
indelével. Tentava fechar os olhos, mas sempre acordava e se percebia sozinho
(apenas o velho uísque a acompanhá-lo...).
Com o passar de mais alguns minutos
(que lhe eram quase intermináveis!...), o empresário se retirou da piscina e
resolveu passear um pouco por seu pátio demasiado extenso. Seu “lar” era análogo
a qualquer presídio, os seus passos eram sempre regulados pela sua posição
social... e o senhor estava abraçado a uma vergonha oposta à ordem da miopia
contemporânea. Percebeu que apenas tinha, mas ainda não era!... e foi uma
totalidade avessa à interpretação do senso comum: pois a imagem de nosso
personagem estava sempre nos jornais e nas principais revistas sociais (...).
Imaginou então uma família pobre, unida em uma mesa para fazer uma refeição
trivial e no meio da conversa do jantar alguém mostrar a foto do empresário e
pronunciar: “Eis aqui um homem de sorte!”. E a vergonha consumia ainda mais o
milionário...
“Estranho é o modo como a solidão me
faz inverter a lógica de minha mentalidade...” pensou e tentou se esconder
atrás de alguma lógica científica, mas o processo gerou um resultado nulo. Tem
certas coisas que superam a trivial “racionalidade”... e a noite continuou o
seu rumo até o empresário se embriagar por completo e fechar os seus olhos por
umas duas ou três horas... se levantou com o nascimento do sol e seguiu o seu
itinerário de sempre antes de se dirigir à sua empresa. Durante o período de
seu trabalho, a sua esposa ligou e se admitiu “arrependida” (queria continuar
com o seu casamento, mesmo sabendo que o seu marido jamais haveria de mudar...)
e deu a boa notícia: o filho do casal também estaria em casa na hora do jantar.
Um sorriso sincero se apoderou da
face de nosso personagem; mas o seu semblante era o resultado de seu sentimento
de vitória (pois, análoga à sua empresa e os seus funcionários, sua família
admitia em atos que lhe era totalmente submissa!...), o senhor nem chegava a
cogitar os questionamentos da noite anterior... era uma parte de sua biografia
a ser esquecida. Não, o empresário não ignorava apenas o passar de uma lua; na
verdade, ele ignorou a missão mais nobre que qualquer indivíduo carrega consigo
assim que nasce.
Nenhum comentário:
Postar um comentário