quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

                E eis que o vício continua: está tudo certo, agora é questão de tempo para que o meu terceiro livro, segundo de contos, venha a ser publicado!

                  A obra será denominada de A MENINA E O GUARDA-CHUVA e estará à disposição daqui a alguns meses.

               Para diminuir um pouco a ansiedade, e aumentar a expectativa, segue abaixo alguns contos que estarão à disposição no meu próximo trabalho.

                         Atenciosamente,
                     Rodrigo Pazini Bernart.
Hipérbole de consumo

          Um tanto quanto deslocado da realidade, apenas para se utilizar um termo trivial, o velho senhor Arthur guardava consigo o cansaço do acúmulo de tempo vital e os excessos de sua loucura; e estava em sua velha cadeira, no pátio de sua residência, com a sua mentalidade sempre inquieta... e o seu repouso, obviamente, não durou muito. Visou o muro, e mais uma de suas “ideias brilhantes” surgiu... foi até a madeira e comprou um número exato de telhas (pois acreditava que não cometeria nenhum erro...) e executou o seu serviço de forma paciente e eficaz. Durante o seu desenvolvimento, presenças da rua surgiram para presenciar o seu ato: três crianças, suadas e uma com uma bola na mão, estavam sentadas no meio-fio da calçada (inertes em suas respectivas observações...). E o nosso personagem mais velho, personificação exata da misantropia, apenas ignorou as crianças...
          Personificação exata da misantropia, creiam senhores que não exagero em meu parecer (que se molda à análise de uma vida inteira...). Era ainda criança, quando se afastava dos demais para apenas ficar sozinho com os seus estudos (e principalmente os seus “trabalhos”!...); deixava-se afastado, sem a presença de outrem. Preocupação de seus pais, efígie alvo de narrativas da população que o cercou durante toda a sua existência; aparentemente, o seu isolamento nunca lhe entregou a qualquer questionamento mais aprofundado sobre a vida (nem distúrbios psicológicos, menos ainda a “necessidade” de uma “socialização” com qualquer sujeito...). Um tanto quanto frio em seus modos calculistas para “se planejar afastado”,...
          - Esse sujeito é estranho, muito estranho mesmo... – disse Cristiano, um desses líderes infantis. E o garoto, que deixou a bola que carregava no chão e se ergueu repentinamente, colocou-se em sua postura soberana e prosseguiu: - então, vamos logo pesquisar a vida dele e descobrir o segredo que ele guarda.
          Os outros três garotos se observaram, e a negativa surgiu de uma isonomia presente nos respectivos olhares:
          - Não, essa não é uma boa ideia. – disse um.
          - Certamente isso acabaria em confusão! – disse o outro.
          - É, Cristiano, dessa vez a sua ideia não foi produtiva... – concluiu ainda um terceiro, que tirou a bola das mãos do líder e se encaminhou com os outros três para o campo. Com a cabeça baixa, Cristiano não havia aceitado completamente a recusa de seus amigos... dirigiu então a sua visão para a casa do sujeito que agora o deixava intrigado: uma casa e um terreno amplos, que haviam sido comprados há pouco tempo. Antes, Arthur vivia em uma residência mais humilde e pagava aluguel. Na mente da criança não se estabelecia ainda um modelo complexo de análise financeira, mas o garoto já conseguia chegar a algumas conclusões... e a incógnita que lhe dominava era bem específica: “Como um sujeito que, aparentemente, não trabalha tem renda para se sustentar?!” novamente se perguntou. E a vontade retornou ao domínio de seu espírito...
          - Vou atrás disso, independente de quanto essa verdade possa me custar! – decidiu-se Cristiano e foi até onde estavam os seus amigos.
          Com o seu semblante sério, chamou a atenção dos outros garotos sem pronunciar qualquer palavra; quando fez as suas declarações, foi ignorado pelo assunto ter sido descoberto. Entristecido, sem forças para retornar à discussão e menos ainda para agir sozinho, o líder aceitou a sua derrota... foi jogar bola com os seus amigos e em questão de pouco tempo já havia se esquecido da vida que outrora quis pesquisar.
          Degustando calmamente o seu chimarrão, o homem começou a reparar à vida alheia diante da visão privilegiada que lhe vinha da sacada de seu lar; após finalizar a sua rodada, entregou a cuia à sua esposa e a sua voz saiu (era então “incontrolável”!...):
          - Esse indivíduo é um tanto quanto diferenciado, e digo isso sem nenhum tipo de má intenção... – gesticulava, não queria ser julgado do modo que julgava. – mas existe alguma coisa nessa história. Não é normal que um homem da idade dele viva isolado de tudo e, o que é pior!, nos ignorando; ele simplesmente faz de conta que não sabe de todas as narrativas que a vizinhança cria sobre o grande mistério que é a sua vida!...
          E a esposa apenas concordava, pois não tinha paciência para expandir qualquer tipo de discussão e/ou diálogo com o homem que estava na sua casa, mas não estava do seu lado. Eram duas ilhas, diferentes de um casal, mas reservavam duas personalidades indiferentes às suas próprias condições: ele falava da vida de todos e ela o ignorava de forma demasiado fria, pois verdadeiramente proposital. E, no final das contas, as crianças e o casal eram uma síntese perfeita daquela vizinhança...
          Arthur terminou o seu serviço e ficou alguns segundos fazendo uma correção severa com os olhos... e tudo estava perfeito. Olhou para o céu, e o anoitecer era quase uma ordem para que ele entrasse em sua casa. Adentrou nos seus aposentos e começou a preparar a sua última refeição do dia. E era sempre a mesma perfeição, até quando resolvia cozinhar!... uma demora e uma diligência doentia, para a janta de um único indivíduo (!...). Finalizou o seu hábito alimentar do dia com uma xícara de chá que foi lentamente saboreada; após, fez o seu exercício físico (era um ao acordar, um após o almoço e mais um antes de dormir) e preparou a sua cama (com o mesmo senso de perfeccionismo que guiava todos os seus atos...). Não estava frio, não estava quente; mas o seu sonho lhe reservou um questionamento novo...
          De súbito, a escuridão e o silêncio de um fechar de olhos noturno se desfez; ainda a noite, carros e pessoas em movimentações indiferentes, e às costas de nosso personagem uma arcaica estação de trem. Na sua mente, um grande acúmulo de trabalho desgastante da semana inteira (era, finalmente, uma sexta-feira!...); e o barulho dos carros, dos transeuntes, da falta de esclarecimento... e a espera por sua esposa. Não saber como estava a sua esposa, a quem aguardava com uma preocupação afetiva; em todos os automóveis que passavam, procurava ansiosamente o veículo dela!... a angústia e o cansaço consumiram os ossos de seu espírito. Acordou no introito do dia, com o susto recebido pelas imagens internas...
          O ar de sua condição lhe foi um acesso à doce liberdade!... pois os problemas e preocupações do resto da humanidade eram demasiado sufocantes... de modo que Arthur começava a louvar a sua própria existência.
          - Que bom que não tenho sentimentos! – disse com grande satisfação.
          E aquela não era a primeira vez que os seus sonhos o fizeram ter asco de algum princípio “humano”. Contrariando as lógicas já estabelecidas nos meus registros, retornarei às partes do sono do personagem (que julgo aqui como universais).
          Na primeira noite que separo para este certame literário, a escuridão modal do sono foi interrompida com uma sensação angustiante de uma queda livre. O mundo inconsciente se utilizou de uma ameaça física para transformar o indivíduo em seu maior inimigo, o medo foi então o seu despertar...
          Mas às vezes (talvez, na maioria dos casos...) o sentido é inverso ao que chegou até esta parte da narrativa. Todas as faltas preenchidas, a anulação completa de todos os defeitos pessoais; um tanto quanto utópico tal parâmetro, mas foi essa a real vivência de um desses filmes que Arthur teve de sua existência em inversão: era um ser perfeito, com ampla admiração por parte de outrem, e havia conquistado um materialismo invejável (apenas a criaturas míopes, é bem verdade...). Arthur era respeitado, adorado, um grande expoente da alta cultura!... tudo isso, e apenas no plano exterior. Nem adentrarei aqui nas discussões existenciais, pois qualquer uma delas sempre alimentava o despertar de um sono insalubre...

          E era sempre o mesmo espectro, o maldito sentimento!... nele estava a escravidão dos indivíduos. O conjunto de normas “inquestionáveis”, o frio realismo que o menosprezava... Arthur tinha consigo a ideologia que até hoje domina as ordens políticas das organizações burocráticas de nosso temp(l)o.
Uma fábula de meu tempo

          - É, parece que as coisas estão se complicando!... – diz o piloto de um avião ao seu assistente.
          - E o que poderemos fazer? – responde o copiloto.
          - Nada, absolutamente nada! – volta a falar o piloto.
          Os dirigentes do avião chamam a aeromoça e lhe dão uma notícia não muito agradável: o avião passará por pequenas turbulências (por causa do tempo), mas em breve a viagem retornará ao seu normal... e a moça, com a sua fé restrita à sua posição profissional, vai até os passageiros e lhes dá a informação que recebeu; apenas pede para que apertem bem os seus respectivos cintos.
          Todos se dividem em duas posições distintas de modos de pensar: alguns (análogos à própria aeromoça!) ficam aliviados ao terem por certo que as coisas haverão de melhorar; outros (eternos escravos do pensamento negativo e iguais aos pilotos do avião) sabem que as probabilidades não são boas e confiam apenas nas racionalidades da ciência...
          Em questão de minutos, o avião cai no solo e todos os indivíduos que haviam dentro dele morrem: alguns de forma repentina e outros diante de grandes aflições em milésimos de segundos... cada um sofre (ou não!) de acordo com a sua posição.

          E em muitas ocasiões a vida se iguala a esta narrativa; e ninguém sabe se ela continua ou não, as hipóteses vão da “racionalidade” à “metafísica” e a estas questões não quero adentrar aqui... por que escrevi esta história (que foi formada através da narração de outrem...)? na verdade, foi apenas a vontade que me guiou; não existe nada, além do egocentrismo, nestas narrativas pós-modernas.
Universo nulo e restrito

          Primeiro surgiu o piso, que se formou de maneira instantânea e pragmática... após, as paredes, portas, janelas, jardim do quintal, todos os móveis... enfim: tudo se construiu sem que a vida surgisse.
          A televisão parada e quieta, sem qualquer sinal capturado por sua antena inexistente. O vento sopra e adentra pela janela; de vez em quando, algum objeto cai sobre o solo e nunca mais se ergue novamente... sem vultos de qualquer animal vivo, a velha casa continua à sua praxe de sempre: nem ratos e nem pássaros a rodeiam, e nem insetos aproveitam a imensidão proporcionada pelo grande jardim do quintal.
          Ao lado da velha casa, outras semelhantes: que não são melhores e não são piores do que ela... na verdade, apenas trocam-se os objetos, o espaço e seu tamanho... não existem sinais de superioridade ou inferioridade, a natureza se transforma, mas os seus princípios sempre serão os mesmos.
          Tão distante da realidade todo este princípio não-vital!... existe alguma disputa, cenário diferente ou processo a ser seguido?... Não existem respostas convincentes; e a verdade é que não existem provas que concretizam a existência dos questionamentos filosóficos, científicos, racionais ou poéticos.

          Fora das casas, calçadas e ruas vazias... grandes prédios abertos; e ninguém para fechar as suas janelas e portas!... Grandes comércios e seus produtos: tudo está à disposição, menos os animais e os humanos (pois aqui é utópica a existência de qualquer vida). Todas as estruturas da sociedade pós-moderna estão expostas; tudo está quieto diante do grande projeto nascituro que é a humanidade.
Vozes de um fantasma

I

          Todos os dias quando acordo percebo que o tempo não funciona como servidor do universo humano, pois todos não conseguem controlá-lo e não conseguem harmonizá-lo de acordo com as individualidades de nosso pequeno espaço... e eu, tão distante a pensar em outrem, vejo como os planos temporais poderiam ter sido deferentes e eloquentes para a minha existência...
          O quarto sempre vazio, como se tivesse sido algum campo desnecessário de outrora... a minha vida e a minha história: presas fáceis da inércia inativa que se apoderou de minha falta de significados para os paralelos existenciais!...
          Às vezes, ao andar sozinho pela madrugada, no pátio de meu lar consigo ver algumas almas agonizantes dançando e cantando; na sala de minha casa, observo uma pequena criança brincando de forma indiferente; mas, no meu quarto, nada acontece além de minhas celeumas filosóficas: enquanto preparo a minha cama e faço os velhos rituais de sempre para me encaminhar ao meu sono noturno, nada acontece... mas, quando apago as luzes e me deito, os fantasmas criados por minhas culpas me atormentam até o momento em que me afasto deles e inicio à minha insônia!...
          E são assim as minhas noites: ou me agrido com as minhas falhas, ou observo os desgraçados que frequentam o pátio de meu lar, ou (ainda!) fico a observar a criança que vive na sala de estar e me nega totalmente.
          Tal é o desequilíbrio harmonioso que me segue, que não outros impulsos tenho para criar algo novo... mas apenas uma menina (que é deveras indiferente para as almas que vivem em meu lar, inclusive em relação a mim) consegue fazer com que o meu destino seja um pouco diferente...
          É que às vezes me perco em minhas insônias eternas e ela se aproxima: menina loira, magra, com olhos azuis e sua velha boneca de pano... ela começa a brincar despreocupadamente... e eu, perplexo diante de tanta beleza e um tanto quanto encabulado por ser totalmente desprezado, a fito e começo a escrevê-la através de minhas letras; como se fosse um pintor fazendo a sua arte através da inspiração advinda da bela modelo que está à sua frente...
          Mas, não de forma rara, surge a outra: a mesma garota, só que com os seus milênios de existência bem expostos... e ela agride a sua juventude; e eu, diante de tal espetáculo, não posso fazer nada!...
          E assim se iniciam as minhas dualidades: as lágrimas da garota de seis anos de idade caem em meus poemas... e eu, atormentado diante do espetáculo, apenas escrevo o que vejo e o que penso diante dele. Alguns minutos atrás, a garota me estendeu a sua mão; e tal gesto foi o suficiente para que eu decidisse ficar morando aqui dentro de minha literatura pequena.
          Sei que a maior parte do que escrevo se encaminha para o grande mundo do esquecimento ao qual pertencem todos os lixos triviais do cotidiano; mas o pouco que resta me faz contente e me abraça na esperança de saber que não morrerei sem deixar nada.
          A minha literatura é a unificação do mundo ilusório dos sonhos e a realidade que supera os piores pesadelos.

II

          Depois de meu introito, enquanto filho do contato advindo do choque entre o grafite da lapiseira com a folha de papel virgem e industrial, percebi grandiosa necessidade: descrever o belo... só que tal tarefa não é tão prosaica quanto parece!...
          Primeira questão: onde está e como deve ser procurado o belo?
          Pode-se perceber a beleza em tudo: à natureza, à harmonia de qualquer coisa existente, alguma garota em especial... mas tal sensibilidade para com qualquer parâmetro vital existente exige percepções apuradas e à total quebra de laços afetivos com o egocentrismo...
           Até aqui, só falo de necessidades e mais necessidades,... e é deveras necessário que isto aconteça: que todos os homens possam deixar as suas essências mundanas de lado!...
          Tantas digressões que faço!... mas continuarei o meu discurso sobre o belo, dando ênfase ao que mais me agride dentro dele: eu mesmo... isto é, a minha limitação artística.
          Tantas coisas boas que se afloram nos paralelos nascituros de cada momento... e eu (total avesso aos grandes artistas do pretérito) não consigo descrever a vida no seu decorrer efêmero...
          Sei que não posso me ignorar enquanto escrevo, portanto: escrevo sobre algo que não tem parâmetros com a vida social vigente, pois não tenho vida além de mim; não consigo descrever o belo, pois nem ao menos consigo usufruir da beleza do mundo; não tenho nenhuma perfeição literária, pois sou um indivíduo desprovido de virtudes visíveis e palpáveis.
          Talvez eu tenha que escrever para que assim (ao me olhar no espelho) eu consiga aprender algo sobre a vida... talvez os meus escritos sejam parte do útil para outrem... ou, quem sabe, a minha literatura não tenha nenhum valor.

III

          A chuva desce até mim no momento de agora, mas nem molhado consigo ficar!... outrora, fitava todos os deslumbramentos de outrem inexistente... hoje, aqui (quieto e parado), percebo que poderia ter sido um pouco mais humano.
          Tal diário breve de momento foi deveras insignificante para os demais homens existentes e vivos... sim, partes insopitáveis da essência divina...
          Triste é o meu enredo, pois não sei quando poderei voltar...

          Apenas foi a arma, o sangue e o tiro: o meu suicídio do pretérito e minha incerteza diante da grande celeuma vigente (que questiona se voltarei a viver). Aqui não sinto mais nada, não vejo mais nada... um grande martírio que se inicia através da grande omissão da peroração universal.
Diário íntimo

          “Preciso fugir deste maldito cotidiano!” dizia a mim mesmo quando estava na casa de minha namorada em cada domingo daquele período vulgar (...). Mas o instante me era de pseudoadmiração (diplomacia!...) para com a família em que jamais adentrei: a minha acompanhante era dona de uma personalidade, simplesmente, pueril; a minha sogra tinha um egoísmo que lhe transformava na “dona” da família; e o meu sogro era um velho chato com um amplo repertório de piadas sem graça... era um contexto que só me atraia diante da efígie da jovem por quem estava apaixonado. Vocês sabem, melhor do que eu!, a lógica universal do livre-arbítrio: todos nós estamos no contexto que produzimos. No instante de minha pausa vital, sempre retornavam a mim os espectros do pretérito; isto é, o cotidiano em que matei o meu próprio cotidiano...
          A minha juventude parecia bela, e o meu espírito a deixou passar sem criar qualquer face e/ou sem se formular em atos!... minha existência é um arrastar que nunca superou o meramente trivial. Eu estava sempre em casa, com um ciclo dividido em trabalho burocrático inútil e um arrastar de músculos no “tempo livre” (certas coisas parecem infindáveis!...), e minha imagem me era um acervo finalizado da falta de significado... e hoje o niilismo me fez esquecer-me em qualquer outro campo contrário à simplória fisiologia. Ah, e hoje perceber que caminho por puro modismo!... sempre retorno ao abraço interno de heterônimos mortos e ignoro o que devo fazer: no agora, retornar à narrativa...
          Um convite desagradável me foi apresentado: meu irmão iria se formar no tal do “Ensino Superior” (como se a universidade realmente fosse uma instituição de ensino e aprendizagem...). Sem qualquer desculpa para me desviar de tal encenação, aceitei me dirigir ao circo vulgar... no início, eu pensava que o manicômio dos burocratas fosse um problema nulo; e agora não tenho qualquer dúvida diante de tal afirmação inquestionável (a “racionalidade” de meu tempo se autorridiculariza). É estranho que a humanidade ainda se veja como construtora de qualquer qualidade de vida... mas a escravidão mascarada é aceita pela individualidade de todos. E eu fui para a maldita formatura (!): meus pais estavam do meu lado e meu irmão estava na frente (com uma postura soberana...). Sabem de uma coisa, eu acredito que um dia os homens usarão os seus respectivos cérebros e acabarão com todo o faz de conta que nos rodeia. E então, foi naquela ocasião que a conheci; ela era uma colega de curso de meu irmão. Não gastarei o sagrado tempo de quem me escuta com detalhes físicos dela (os velhos detalhes modais das narrativas de sempre!...), o fato é que a ocasião foi o conhecimento recíproco de um casal; o introito da única relação séria que tive em vida.
          Minhas digressões de agora são o mal-estar exposto que tenho para com o meu próprio certame, e se eu retorno a ele (acreditem!...) é porque percebo alguma utilidade para quem me escutar (pois a engrenagem da humanidade é mera narrativa de consuetudinário!...).
          Pois naquela noite (sempre lembrando que eu ainda tenho uma história!...) marquei um encontro: um passeio, apenas; no instante, apenas a conversa me atraiu (!?...). Vocês realmente acreditam nisso: beijos e abraços, mas só a presença singular da moça me chamou atenção?!... eram tempos de minha loucura (em algum pretérito próximo eu cheguei a ser romântico!...). E, na breve caminhada, meus olhos me saboreavam com os detalhes de minha acompanhante: pele morena, olhos pequenos (uma breve lembrança de sua descendência oriental...), seios pequenos e lábios discretos (agentes portadores de um beijo doce e delicado!...); seus modos de agir apresentavam uma pequena timidez (...) que se unia ao seu charmoso sotaque interiorano. A família de minha ex-namorada era de uma cidade distante, mas que agora o destino aproximava de meu lar... felizmente, éramos distantes por alguns quilômetros (estes que se tornavam quase nada em um passeio de carro). Ela ainda morava com os seus pais (sou onze anos mais velho!...): ao ir visitá-la, conversar um pouco com o meu sogro e a minha sogra era um paralelo sem fuga. E o tempo trouxe-me à rotina, e ela me deixou no introito desta história...
          Vislumbrava os três excêntricos e não conseguia presenciar-me para além de minha prisão (e a cela era cada vez mais apertada!...). Era um conjunto do desejo de muitos dos meus semelhantes: a união de duas famílias parecidas, um casal que poderia trazer ao mundo belas crianças!... a perfeição é derrotada, e o seu maior (e único!) algoz é o tradicionalismo (espectro cego, sem racionalidade por ser alheio ao humano). Tudo iniciou-se no modal da repetição, e o fato de ser igual era o paralelo que eu deveria matar!...
          Na última noite em que dormimos juntos, ela me abraçou e começou a falar sobre o nosso futuro filho... e o desejo de romper com o ciclo me surgiu como fera indomável. Que dizer: ser pai e carregar a responsabilidade de ser o principal educador de uma vida?! não, realmente eu estava desprovido de tamanho poder. E a fraqueza me fez ignorar qualquer sensatez...
          - Acabou! o nosso relacionamento acabou. – disse a minha amada e fui embora, sem nenhuma cerimônia e nenhuma explicação. Sensibilizei-me para o final de qualquer enredo, minha vergonha me fez despistar-me de minha família e sua continuação...
          Peguei a estrada, e me direcionei ao caminho mais longo da passagem de concreto... estava em uma localidade distante, e apenas um fator conseguia saciar ainda meu sangue (supostamente) quente: ali ninguém conhecia a minha história. Diante de meu exterior, consegui adquirir um pequeno apartamento em uma cidade demasiado extensa (!). Um emprego mediano no comércio foi mera questão de tempo... e era esse o meu resumo vital desta parte da narrativa: durante o dia, o passar do tempo na correria irracional da ganância pueril da aquisição fria de papel supérfluo; e à noite, após me alimentar de qualquer maneira e de modo forçado, a insônia surge diante da efígie completa de meus demônios do pretérito.
          Sem conseguir ar respirável na minha personificação exata de fuga, fitei em uma madrugada qualquer (estúpida por ser análoga a todas as outras!...) duas ferramentas simplórias, as duas únicas que me restaram: o papel e a caneta. Minha produção se tornou corolário em linhas demasiado tortas... produzi apenas frases pomposas diante do léxico escrito e arquiteturas expostas em frases (aparentemente) sem sentido. E o vício se ampliou, e era a metade de uma dicotomia bélica: ou era o meu escrito, ou era o espectro de meu autorretrato...
          O hábito e o cotidiano, com o passar do tempo, se uniram de forma assustadora; como sou um péssimo detalhista, finalizarei este certame com uma oratória sucinta. A agonia de minhas apresentações reais (a escrita e o meu pensar!...) me fez perder o equilíbrio mental... e a ordem de meu itinerário era o mesmo princípio (no seu introito, desenvolvimento e final): deveria acabar imediatamente a minha existência. Os meus músculos se enfraqueceram e os dias me eram cada vez mais sufocantes!...
          Sair da presença de minha família e desistir de ampliá-la foi um suicídio interno... e o meu corpo era apenas uma apresentação modal. Faltava-me um detalhe: a coragem!...
          Sempre costumava sair para esquecer tudo,... e sempre parava, no meio do percurso, para conversar (brevemente!) com qualquer cidadão; e chegou então um dia decisivo: passei pela rua, olhei para todos os cantos e ninguém me dirigiu o olhar (estava fixado em algo nulo, totalmente dispensável!...). Adentrei no meu apartamento e pude, enfim, perceber o nada que me restava: uma carreira de sucesso no comércio, uma estrutura financeira invejável e alguns rabiscos excêntricos... e a ausência de minha amada, verdadeiramente, foi sentida por mim. Uma borrasca sentimental, que eu jamais tivera anteriormente, se apoderou de minha maior frustração... minha idiossincrasia era uma estrada sem volta de ignomínia... desesperado, no meio de um ciclo fechado, uma paisagem vazia me trouxe à revolta: os rabiscos vulgares, poesias e contos pueris (paralelos expostos, comprovações concretas de minha loucura!...). Ser poeta, ter sempre gravado os defeitos internos! uma conformação infeliz de um humano demasiado e, ao mesmo tempo, desprovido de existência. Ser poeta! não, não existia qualquer lógica e/ou salubridade em tal arquitetura. Restava-me um recurso digno: me livrar do que mais me sufocava...
          Acordei tarde na manhã seguinte e senti uma dor em todo o corpo (fraqueza estranha por falta de significado...). Consegui, apenas!, lavar o rosto... e novamente fitei o meu câncer: os meus escritos estavam reunidos sobre a mesa. Eram grandiosos, de modo que eu não conseguia mais dominá-los!... e a janela estava fechada: abri-a prontamente. Sufocado, os meus escritos escapavam de minhas mãos; totalmente desajeitado (o desequilíbrio e o agir involuntário dominavam o meu corpo!), peguei as folhas e sem nenhuma alternativa as joguei para fora de meu lar, deixei-as à disposição do mundo exterior!...
          Alívio foi o que eu senti, mas foi meramente momentâneo... como me julgariam os meus leitores (a minoria, pois a maioria iria deveras me ignorar!...)?! certamente, ninguém pararia para refletir sobre algo que fosse além de minha personalidade (e eu não sei se não faria o mesmo...). E foi quando eu realmente abri os meus olhos: me ergui da cama de forma abrupta e, com o susto, a minha esposa fixou o seu olhar sobre mim. Um peso, enfim!, saiu de minhas costas; e eu rompi o silêncio com uma frase, no mínimo, estranha:
          - Que bom que sou um sujeito normal, ao invés de um poeta solitário!

          Nada explica o semblante de minha mulher após eu ter proclamado tais palavras.
Lição possível a um agente gratuito da burocracia

          Acordei em uma manhã análoga a todas as outras: após não ter qualquer possibilidade para descansar mais, contra a minha vontade, me levantei da cama, tomei um banho, preparei um café e tirei o carro da garagem... toda a mediocridade do cotidiano pós-moderno estava fixada em outro dia, outro estigma da luta contra os próprios esforços.
          Era mais um dia de meia estação, isto é: não estava frio e não estava quente. Estava o dia ainda um pouco escuro, não era mais do que 5h e 30min. Fixei o meu olhar para uma cena inusitada: no canteiro central, que dividia duas pistas com sentidos contrários, um grande lagarto. Mas o que faria na rua, em uma temperatura um pouco fria, um animal que só saia de seu refúgio diante de um sol escaldante (pois se trata de um réptil que tem em suas veias o sangue frio)?
          Respostas não tive, e minha confusão se expandiu quando observei os passos tortos daquele exemplar vivo da natureza... com um medo inexplicável, pensei duas vezes antes de me aproximar. Respirei fundo e, enfim, adquiri coragem!... com a minha caminhada demasiado lenta, fui chegando cada vez mais perto daquele indivíduo e ele não se preocupou com a minha aproximação; de forma indiferente, o lagarto continuava a caminhar torto e agia como se não houvesse mais ninguém à sua volta.
          É ou não é uma história excitante?... mas continuem prestando atenção.
          Cheguei mais perto e me deparei com a situação do bichano: um dos lados de sua costela estava totalmente aberto. Para caminhar, tinha que se torcer todo (o lado do sangue para cima e o outro se arrastando no chão). Eu estava totalmente entretido com aquele espetáculo, um drama da vida!, quando fui interrompido de forma inconveniente... a minha esposa me chamou do lado do carro:
          - Amor, já está na hora de sairmos! não podemos nos atrasar mais...
          Não tive tempo para mais nada, apenas consegui criar uma teoria: o lagarto foi pego por algum cachorro em seu próprio refúgio (afinal, o que faria um animal do calor insuportável sair para a rua em uma temperatura quase contrária?) e ele não conseguiu revidar os golpes de seu algoz porque seu sangue não estava quente...
          Fui trabalhar com aquele espetáculo que a natureza havia me reservado. Me senti demasiado honrado por tal presente do universo... pois convenhamos: qual era o meu real merecimento de estar ali?
          Olhei para os céus e agradeci:
          - Muito obrigado, oh universo, por ter me dado sangue quente!
          Pois um lagarto é facilmente derrotado por um cachorro quando o seu sangue é frio, mas o meu sangue quente me permite dar coices em qualquer animal que venha a me agredir em qualquer época do ano.