Catarse do pretérito: a trilogia idiossincrásica
Tocando o seu violão com o prazer que
sempre tinha diante de tal ato, Giuliano estava em seu campo de vida: arpejos,
ascensões harmônicas, cromatismos pré-programados e uma melodia única (singular
por sua beleza espontânea!). Estava fazendo os seus improvisos, só conseguia se
sentir bem dentro deles; outrora o seu talento musical lhe rendeu um convite
para uma grande orquestra, mas o tempo transformou maestro e músico em rivais:
um queria apenas seguir o que estava escrito na partitura, o outro queria
enriquecer os sons clássicos com os seus improvisos... Giuliano foi expulso da
orquestra e de todos os empregos que teve anteriormente. O fato de apenas
pensar em música lhe fez ignorar as “oportunidades” (?!...) da vida,... e lhe
restou um único emprego para fazer os seus improvisos harmônicos no bar: era
tudo o que queria; e, para isso, ignorava o próprio mundo financeiro... vivia
de qualquer jeito, mas era feliz porque nunca se separava de seu violão.
Ignorando a bela projeção musical que
saia do violão de Giuliano (este que ignorava qualquer existência exterior ao
seu instrumento...), Régis erguia o seu copo com cerveja e fazia questão de
brindar com todos (e erguia a sua voz sem maiores cerimônias!...): era
sexta-feira!... e não havia outra sensação para se retirar do recinto além do
espírito de festa. Belas mulheres, música de qualidade, a bebida na temperatura
certa!...
E lá no canto, distante dos demais (e
de qualquer possibilidade de ser visto por mais alguém além do garçom!...),
João Cláudio observava o seu copo (cada vez mais vazio!...) e o grande músico
que estava no palco. “Ao menos, sobrou algum talento neste mundo!...” pensou
com a mesma amargura que guardava no introito de sua existência. Fitou então
Régis e todos os indivíduos que se divertiam com ele:
- Como esses imbecis conseguem
ignorar o talento do jovem que está se apresentando?! – falou em voz alta
enquanto deu um soco na mesa. Olhou para o lado e teve uma grande surpresa: o
garçom retornava ao seu encontro. Surpresos, um com o ato e o outro com a
presença!, não perderam a classe... e agiram de forma natural.
- O senhor gostaria de mais um
drinque? – perguntou o garçom com sua postura hipócrita de sempre.
- Por favor, mas desta vez sem gelo.
– respondeu João Cláudio.
O ébrio, após observar mais uma vez o
músico e ouvir o som sublime daquele violão, ignorou que chegou a pensar em que
imagem sua estava transmitindo ao garçom; e este, de forma totalmente discreta,
pediu a um dos seguranças para que ficasse de olho no “louco” que estava
bebendo demais... e retornou à mesa, serviu o drinque e continuou sua praxe.
João Cláudio tentava esquecer, mas os
espectros não saiam de sua cabeça: as oportunidades que nunca teve e as que
deixou passar!... Régis aproveitava a festa que se justificava após a árdua
semana de trabalho... e Giuliano saboreava a sua música, de forma a ignorar
todos os indivíduos ali presentes (até quem lhe garantia o sustento!...).
Chegou o final da apresentação do
nosso músico: pegou o seu violão (e o seu pagamento!...) e se direcionou à
saída. Régis continuou bebendo com os seus amigos, o seu espírito em êxtase ignorou
o final da música (nem havia reparado no introito dela...). Giuliano só queria
saber de seu lar, só pensava em voltar a fazer os seus improvisos no sofá de
casa (era o local e o ato que mais lhe apraziam!). João Cláudio fazia questão
de parabenizar o talento do músico, chegou perto dele (que foi pego de surpresa)
e lhe cumprimentou:
- Gostaria de agradecer pelo que me
deste hoje! – falou o ébrio em tom de emoção.
- Mas o que foi que lhe dei? – disse
o músico perplexo.
- Sempre venho a este bar escutar os
músicos. – voltou a falar João Cláudio, enquanto Giuliano pensava: “Mas eu não
perguntei nada a esse indivíduo!...” De qualquer forma, o cliente do bar
continuou a sua oratória: - E você é o melhor de todos os que já vi! não sabes
o quanto acrescenta à vida deste simplório ébrio!...
Sem conseguir arquitetar qualquer
resposta, Giuliano se percebeu em uma pequena incógnita que não merecia morrer
com o silêncio: o velho deixou perceptível a sua desilusão para com a vida, mas
(e principalmente!) o dom de admirar a boa música (?!...). O nosso jovem músico
soltou a única frase que lhe parecia oportuna diante da situação:
- São para pessoas como você que eu
faço minhas melodias!... – após essa frase, cada um foi para o seu respectivo
lar: o músico sentou em seu sofá e tocou o seu violão, e o ébrio foi à sua cama
com um sorriso verdadeiro no rosto...
Nenhum comentário:
Postar um comentário