Epopeia sem identificação
“Caríssimo diário, o sol está se
fortalecendo com o introito desta primavera... as flores que surgem são o
princípio de uma arquitetura divina. Na natureza, não consigo achar qualquer
defeito; mas em minha sociedade... sem maiores voltas, vejo-me obrigado a apresentar-te
o motivo que me impulsionou a lhe dar a existência: todos os meus semelhantes
se personificaram em efígies de porcos.
Parece estranha a minha análise, mas
é verídica em seus aspectos...
Meus irmãos, meus pais, os indivíduos
que presencio no meu cotidiano e (principalmente!) os que vejo na televisão!...
a espécie humana é análoga à espécie suína.
E comecei então a refletir: os
hábitos são iguais. Provavelmente os homens foram se encorpando em seus
reflexos de pensamento, comprovando assim as teorias do ultrapassado Lamarck.
De tanto insistir em suas convicções, meus semelhantes perderam suas máscaras.
E o engraçado é que eu não me lembro de tê-los visto de outra forma...
O pretérito, sim o pretérito!... não
consigo ver a face desse espectro que explica os processos que nos trouxeram
até aqui (será que ele faz parte da construção da amnésia coletiva atual?). Mas
estou adentrando em seminários que desviam-me do motivo que me trouxe até
aqui...
Acordo, me lavo (e só eu faço isso!)
e me encaminho até a cozinha para fazer minhas refeições... e lá estão eles:
porcos com indumentárias “humanas” (?!) que me conhecem, conversam comigo e até
usam o meu nome. De forma discreta, me alimento antes para evitar que roubem o
meu alimento... e, no resto do tempo de mesa, fico perplexo por ver aqueles
focinhos se arrastando na tábua (e, posteriormente, no chão).
Nas ruas, presencio milhares de
porcos mais jovens andando de forma desordenada. Livres, sem qualquer
orientação dos mais velhos... fico a pensar na hipótese do surgimento de alguma
instituição de ensino, onde professores ensinem alguma coisa para os mais novos
(estes alunos realmente aprendendo alguma coisa!). Mas eu reconheço que é
loucura: no meio dos porcos não pode existir qualquer aprendizagem. Peço-te
desculpas, diário, por lhe alugar com tal vesânia; mas juro-lhe que não sou
anormal...
Às vezes, me entrego à digressão de
narrativa por pensar que homens devem ser humanos... mas não serei
inconveniente doravante.
O fato é que me assusta em demasia a
indumentária existencial (que desconheço o princípio, se sempre foi isso, e se
a duração do enredo atual é eterna) que está na formação corpórea dos
indivíduos humanos. Afinal: de onde saiu esse pólo excêntrico? será que há
alguma utilidade neste processo de burocracia personificada?!
Não adentrarei novamente nesses
questionamentos, caríssimo diário, pois tu não és digno de tão nobre
filosofia...
Sou dispersivo e confuso, eu bem sei
sobre isto; e não me estenderei mais neste encontro. E as tentativas não terão
mais fim, pois sei que posso (quem sabe em algum dia e/ou ocasião especial!)
usufruir da construção de uma frase sensata.
Retornarei com o passar dos tempos.”
Escrevi com total convicção esse
texto em um livro,... e desconhecia o amor momentâneo por tal objeto e a
certeza que me fez escrever algo, aparentemente, confuso. Respirei fundo e
fechei meu diário,... fixei o meu olhar na capa que não tinha nenhum título.
Era um prazer inexplicável: tinha em minhas mãos a continuação de meu espírito
(talvez um pedaço superior ao meu próprio coração!)...
A comunhão interna de minha vesânia
se fez com a sensação sublime, e os próximos acontecimentos me fizeram
valorizar ainda mais a minha residência em meus escritos. Após muito admirar o
livro de minha autoria, resolvi olhar o meu entorno: escuridão e silêncio era a
totalidade que me envolvia.
Um vazio profundo, a amnésia tomou
conta de meu ser!...
Ao me amedrontar com a real
sociabilidade que estava em mim (e era o meu próprio ser!), resolvi refugiar-me
em minha efígie: estava em pé, nu, e o meu escrito não estava em meus
braços!... a minha nudez tornou-se uma grande incógnita, pois eu realmente não
sabia o que pensar de meu próprio corpo (este que jamais chegarei a conhecer!).
Diante de meu desconhecimento, estar ou não com qualquer indumentária era a
mesma coisa...
Resolvi usar o meu cérebro (labirinto
sempre indecifrável) para tentar lembrar-me em qualquer aspecto, mesmo que
fosse mínimo... e, aos poucos, consegui me recordar apenas das últimas linhas
de meus escritos (o introito desta história que reside em aspas!). Passo a
passo, presenciei o funesto corolário: eu não havia escrito absolutamente nada.
E tudo me remete a reflexões
existenciais!...
O sentido de meu escrever era o mesmo
sentido que tinha diante daquele ambiente vazio: o espetáculo do simbólico
(sonhos e sinfonias) era apenas um entretenimento barato que eu comandava com o
ideal de conseguir fugir de meu simplório deserto histórico.
Não ser nada, estar nu em algo
virtual, sobrar na memória apenas um texto demasiado abstrato!... fixei-me na
tentativa de ter uma mente vazia. Mas o silêncio (de som, imagem e sensações
variadas) é utopia...
Pensei que estava sem estrutura,
resolvi olhar o que havia abaixo de mim: uma escuridão singular me apresentava
a um grande vácuo. O céu, o centro e a superfície... tudo era o mesmo nada. E a
falta é algo que deixa qualquer indivíduo atormentado!...
Enquanto me cansava de descansar em
demasia, não sentia qualquer movimento em minha mente e meu corpo, começaram a
surgir existências supérfluas ao meu redor: primeiramente, um prédio com toda a
falta de significados concretos; ao meu lado, uma pomba que parecia estar de
cabeça para baixo; meus pés começaram a suar e meu corpo estava encoberto por
uma indumentária elegante; acima de mim estava o chão, as pessoas pareciam
formigas; e em mim residia apenas a convicção de um suicida. Comecei a cair com
uma velocidade superior ao que conhecia, o chão estava cada vez mais
próximo!... e antes de bater com a cabeça na calçada fria, eu simplesmente
acordei.
O susto me trouxe um calor que me fez
afastar as cobertas que utilizei para sobreviver de uma noite fria. Quem
escreve esta narrativa é meu inconsciente, pois me esqueci do que escrevi e
vivi em sonho no exato momento em que posei para o espelho.
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