Vozes de um fantasma
I
Todos os dias quando acordo percebo
que o tempo não funciona como servidor do universo humano, pois todos não
conseguem controlá-lo e não conseguem harmonizá-lo de acordo com as
individualidades de nosso pequeno espaço... e eu, tão distante a pensar em
outrem, vejo como os planos temporais poderiam ter sido deferentes e eloquentes
para a minha existência...
O quarto sempre vazio, como se
tivesse sido algum campo desnecessário de outrora... a minha vida e a minha
história: presas fáceis da inércia inativa que se apoderou de minha falta de
significados para os paralelos existenciais!...
Às vezes, ao andar sozinho pela
madrugada, no pátio de meu lar consigo ver algumas almas agonizantes dançando e
cantando; na sala de minha casa, observo uma pequena criança brincando de forma
indiferente; mas, no meu quarto, nada acontece além de minhas celeumas
filosóficas: enquanto preparo a minha cama e faço os velhos rituais de sempre
para me encaminhar ao meu sono noturno, nada acontece... mas, quando apago as
luzes e me deito, os fantasmas criados por minhas culpas me atormentam até o
momento em que me afasto deles e inicio à minha insônia!...
E são assim as minhas noites: ou me
agrido com as minhas falhas, ou observo os desgraçados que frequentam o pátio
de meu lar, ou (ainda!) fico a observar a criança que vive na sala de estar e
me nega totalmente.
Tal é o desequilíbrio harmonioso que
me segue, que não outros impulsos tenho para criar algo novo... mas apenas uma
menina (que é deveras indiferente para as almas que vivem em meu lar, inclusive
em relação a mim) consegue fazer com que o meu destino seja um pouco
diferente...
É que às vezes me perco em minhas
insônias eternas e ela se aproxima: menina loira, magra, com olhos azuis e sua
velha boneca de pano... ela começa a brincar despreocupadamente... e eu,
perplexo diante de tanta beleza e um tanto quanto encabulado por ser totalmente
desprezado, a fito e começo a escrevê-la através de minhas letras; como se
fosse um pintor fazendo a sua arte através da inspiração advinda da bela modelo
que está à sua frente...
Mas, não de forma rara, surge a
outra: a mesma garota, só que com os seus milênios de existência bem expostos...
e ela agride a sua juventude; e eu, diante de tal espetáculo, não posso fazer
nada!...
E assim se iniciam as minhas
dualidades: as lágrimas da garota de seis anos de idade caem em meus poemas...
e eu, atormentado diante do espetáculo, apenas escrevo o que vejo e o que penso
diante dele. Alguns minutos atrás, a garota me estendeu a sua mão; e tal gesto
foi o suficiente para que eu decidisse ficar morando aqui dentro de minha
literatura pequena.
Sei que a maior parte do que escrevo
se encaminha para o grande mundo do esquecimento ao qual pertencem todos os
lixos triviais do cotidiano; mas o pouco que resta me faz contente e me abraça
na esperança de saber que não morrerei sem deixar nada.
A minha literatura é a unificação do
mundo ilusório dos sonhos e a realidade que supera os piores pesadelos.
II
Depois de meu introito, enquanto
filho do contato advindo do choque entre o grafite da lapiseira com a folha de
papel virgem e industrial, percebi grandiosa necessidade: descrever o belo...
só que tal tarefa não é tão prosaica quanto parece!...
Primeira questão: onde está e como deve ser procurado o belo?
Pode-se perceber a beleza em tudo: à
natureza, à harmonia de qualquer coisa existente, alguma garota em especial...
mas tal sensibilidade para com qualquer parâmetro vital existente exige
percepções apuradas e à total quebra de laços afetivos com o egocentrismo...
Até aqui, só falo de necessidades e
mais necessidades,... e é deveras necessário que isto aconteça: que todos os
homens possam deixar as suas essências mundanas de lado!...
Tantas digressões que faço!... mas
continuarei o meu discurso sobre o belo, dando ênfase ao que mais me agride
dentro dele: eu mesmo... isto é, a minha limitação artística.
Tantas coisas boas que se afloram nos
paralelos nascituros de cada momento... e eu (total avesso aos grandes artistas
do pretérito) não consigo descrever a vida no seu decorrer efêmero...
Sei que não posso me ignorar enquanto
escrevo, portanto: escrevo sobre algo que não tem parâmetros com a vida social
vigente, pois não tenho vida além de mim; não consigo descrever o belo, pois
nem ao menos consigo usufruir da beleza do mundo; não tenho nenhuma perfeição
literária, pois sou um indivíduo desprovido de virtudes visíveis e palpáveis.
Talvez eu tenha que escrever para que assim
(ao me olhar no espelho) eu consiga aprender algo sobre a vida... talvez os
meus escritos sejam parte do útil para outrem... ou, quem sabe, a minha
literatura não tenha nenhum valor.
III
A chuva desce até mim no momento de
agora, mas nem molhado consigo ficar!... outrora, fitava todos os
deslumbramentos de outrem inexistente... hoje, aqui (quieto e parado), percebo
que poderia ter sido um pouco mais humano.
Tal diário breve de momento foi deveras
insignificante para os demais homens existentes e vivos... sim, partes
insopitáveis da essência divina...
Triste é o meu enredo, pois não sei
quando poderei voltar...
Apenas foi a arma, o sangue e o tiro:
o meu suicídio do pretérito e minha incerteza diante da grande celeuma vigente
(que questiona se voltarei a viver). Aqui não sinto mais nada, não vejo mais
nada... um grande martírio que se inicia através da grande omissão da peroração
universal.
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