Hipérbole de consumo
Um tanto quanto deslocado da
realidade, apenas para se utilizar um termo trivial, o velho senhor Arthur
guardava consigo o cansaço do acúmulo de tempo vital e os excessos de sua
loucura; e estava em sua velha cadeira, no pátio de sua residência, com a sua
mentalidade sempre inquieta... e o seu repouso, obviamente, não durou muito.
Visou o muro, e mais uma de suas “ideias brilhantes” surgiu... foi até a
madeira e comprou um número exato de telhas (pois acreditava que não cometeria
nenhum erro...) e executou o seu serviço de forma paciente e eficaz. Durante o
seu desenvolvimento, presenças da rua surgiram para presenciar o seu ato: três
crianças, suadas e uma com uma bola na mão, estavam sentadas no meio-fio da
calçada (inertes em suas respectivas observações...). E o nosso personagem mais
velho, personificação exata da misantropia, apenas ignorou as crianças...
Personificação exata da misantropia,
creiam senhores que não exagero em meu parecer (que se molda à análise de uma
vida inteira...). Era ainda criança, quando se afastava dos demais para apenas
ficar sozinho com os seus estudos (e principalmente os seus “trabalhos”!...);
deixava-se afastado, sem a presença de outrem. Preocupação de seus pais, efígie
alvo de narrativas da população que o cercou durante toda a sua existência;
aparentemente, o seu isolamento nunca lhe entregou a qualquer questionamento
mais aprofundado sobre a vida (nem distúrbios psicológicos, menos ainda a
“necessidade” de uma “socialização” com qualquer sujeito...). Um tanto quanto
frio em seus modos calculistas para “se planejar afastado”,...
- Esse sujeito é estranho, muito
estranho mesmo... – disse Cristiano, um desses líderes infantis. E o garoto,
que deixou a bola que carregava no chão e se ergueu repentinamente, colocou-se
em sua postura soberana e prosseguiu: - então, vamos logo pesquisar a vida dele
e descobrir o segredo que ele guarda.
Os outros três garotos se observaram,
e a negativa surgiu de uma isonomia presente nos respectivos olhares:
- Não, essa não é uma boa ideia. –
disse um.
- Certamente isso acabaria em
confusão! – disse o outro.
- É, Cristiano, dessa vez a sua ideia
não foi produtiva... – concluiu ainda um terceiro, que tirou a bola das mãos do
líder e se encaminhou com os outros três para o campo. Com a cabeça baixa,
Cristiano não havia aceitado completamente a recusa de seus amigos... dirigiu
então a sua visão para a casa do sujeito que agora o deixava intrigado: uma
casa e um terreno amplos, que haviam sido comprados há pouco tempo. Antes,
Arthur vivia em uma residência mais humilde e pagava aluguel. Na mente da
criança não se estabelecia ainda um modelo complexo de análise financeira, mas
o garoto já conseguia chegar a algumas conclusões... e a incógnita que lhe
dominava era bem específica: “Como um sujeito que, aparentemente, não trabalha
tem renda para se sustentar?!” novamente se perguntou. E a vontade retornou ao
domínio de seu espírito...
- Vou atrás disso, independente de
quanto essa verdade possa me custar! – decidiu-se Cristiano e foi até onde
estavam os seus amigos.
Com o seu semblante sério, chamou a
atenção dos outros garotos sem pronunciar qualquer palavra; quando fez as suas
declarações, foi ignorado pelo assunto ter sido descoberto. Entristecido, sem
forças para retornar à discussão e menos ainda para agir sozinho, o líder
aceitou a sua derrota... foi jogar bola com os seus amigos e em questão de
pouco tempo já havia se esquecido da vida que outrora quis pesquisar.
Degustando calmamente o seu
chimarrão, o homem começou a reparar à vida alheia diante da visão privilegiada
que lhe vinha da sacada de seu lar; após finalizar a sua rodada, entregou a
cuia à sua esposa e a sua voz saiu (era então “incontrolável”!...):
- Esse indivíduo é um tanto quanto
diferenciado, e digo isso sem nenhum tipo de má intenção... – gesticulava, não
queria ser julgado do modo que julgava. – mas existe alguma coisa nessa
história. Não é normal que um homem da idade dele viva isolado de tudo e, o que
é pior!, nos ignorando; ele simplesmente faz de conta que não sabe de todas as
narrativas que a vizinhança cria sobre o grande mistério que é a sua vida!...
E a esposa apenas concordava, pois
não tinha paciência para expandir qualquer tipo de discussão e/ou diálogo com o
homem que estava na sua casa, mas não estava do seu lado. Eram duas ilhas,
diferentes de um casal, mas reservavam duas personalidades indiferentes às suas
próprias condições: ele falava da vida de todos e ela o ignorava de forma
demasiado fria, pois verdadeiramente proposital. E, no final das contas, as
crianças e o casal eram uma síntese perfeita daquela vizinhança...
Arthur terminou o seu serviço e ficou
alguns segundos fazendo uma correção severa com os olhos... e tudo estava
perfeito. Olhou para o céu, e o anoitecer era quase uma ordem para que ele
entrasse em sua casa. Adentrou nos seus aposentos e começou a preparar a sua
última refeição do dia. E era sempre a mesma perfeição, até quando resolvia
cozinhar!... uma demora e uma diligência doentia, para a janta de um único
indivíduo (!...). Finalizou o seu hábito alimentar do dia com uma xícara de chá
que foi lentamente saboreada; após, fez o seu exercício físico (era um ao acordar,
um após o almoço e mais um antes de dormir) e preparou a sua cama (com o mesmo
senso de perfeccionismo que guiava todos os seus atos...). Não estava frio, não
estava quente; mas o seu sonho lhe reservou um questionamento novo...
De súbito, a escuridão e o silêncio
de um fechar de olhos noturno se desfez; ainda a noite, carros e pessoas em
movimentações indiferentes, e às costas de nosso personagem uma arcaica estação
de trem. Na sua mente, um grande acúmulo de trabalho desgastante da semana
inteira (era, finalmente, uma sexta-feira!...); e o barulho dos carros, dos
transeuntes, da falta de esclarecimento... e a espera por sua esposa. Não saber
como estava a sua esposa, a quem aguardava com uma preocupação afetiva; em
todos os automóveis que passavam, procurava ansiosamente o veículo dela!... a
angústia e o cansaço consumiram os ossos de seu espírito. Acordou no introito
do dia, com o susto recebido pelas imagens internas...
O ar de sua condição lhe foi um
acesso à doce liberdade!... pois os problemas e preocupações do resto da
humanidade eram demasiado sufocantes... de modo que Arthur começava a louvar a
sua própria existência.
- Que bom que não tenho sentimentos!
– disse com grande satisfação.
E aquela não era a primeira vez que
os seus sonhos o fizeram ter asco de algum princípio “humano”. Contrariando as
lógicas já estabelecidas nos meus registros, retornarei às partes do sono do
personagem (que julgo aqui como universais).
Na primeira noite que separo para
este certame literário, a escuridão modal do sono foi interrompida com uma
sensação angustiante de uma queda livre. O mundo inconsciente se utilizou de
uma ameaça física para transformar o indivíduo em seu maior inimigo, o medo foi
então o seu despertar...
Mas às vezes (talvez, na maioria dos
casos...) o sentido é inverso ao que chegou até esta parte da narrativa. Todas
as faltas preenchidas, a anulação completa de todos os defeitos pessoais; um
tanto quanto utópico tal parâmetro, mas foi essa a real vivência de um desses
filmes que Arthur teve de sua existência em inversão: era um ser perfeito, com
ampla admiração por parte de outrem, e havia conquistado um materialismo
invejável (apenas a criaturas míopes, é bem verdade...). Arthur era respeitado,
adorado, um grande expoente da alta cultura!... tudo isso, e apenas no plano
exterior. Nem adentrarei aqui nas discussões existenciais, pois qualquer uma
delas sempre alimentava o despertar de um sono insalubre...
E era sempre o mesmo espectro, o
maldito sentimento!... nele estava a escravidão dos indivíduos. O conjunto de
normas “inquestionáveis”, o frio realismo que o menosprezava... Arthur tinha
consigo a ideologia que até hoje domina as ordens políticas das organizações
burocráticas de nosso temp(l)o.
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