quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Hipérbole de consumo

          Um tanto quanto deslocado da realidade, apenas para se utilizar um termo trivial, o velho senhor Arthur guardava consigo o cansaço do acúmulo de tempo vital e os excessos de sua loucura; e estava em sua velha cadeira, no pátio de sua residência, com a sua mentalidade sempre inquieta... e o seu repouso, obviamente, não durou muito. Visou o muro, e mais uma de suas “ideias brilhantes” surgiu... foi até a madeira e comprou um número exato de telhas (pois acreditava que não cometeria nenhum erro...) e executou o seu serviço de forma paciente e eficaz. Durante o seu desenvolvimento, presenças da rua surgiram para presenciar o seu ato: três crianças, suadas e uma com uma bola na mão, estavam sentadas no meio-fio da calçada (inertes em suas respectivas observações...). E o nosso personagem mais velho, personificação exata da misantropia, apenas ignorou as crianças...
          Personificação exata da misantropia, creiam senhores que não exagero em meu parecer (que se molda à análise de uma vida inteira...). Era ainda criança, quando se afastava dos demais para apenas ficar sozinho com os seus estudos (e principalmente os seus “trabalhos”!...); deixava-se afastado, sem a presença de outrem. Preocupação de seus pais, efígie alvo de narrativas da população que o cercou durante toda a sua existência; aparentemente, o seu isolamento nunca lhe entregou a qualquer questionamento mais aprofundado sobre a vida (nem distúrbios psicológicos, menos ainda a “necessidade” de uma “socialização” com qualquer sujeito...). Um tanto quanto frio em seus modos calculistas para “se planejar afastado”,...
          - Esse sujeito é estranho, muito estranho mesmo... – disse Cristiano, um desses líderes infantis. E o garoto, que deixou a bola que carregava no chão e se ergueu repentinamente, colocou-se em sua postura soberana e prosseguiu: - então, vamos logo pesquisar a vida dele e descobrir o segredo que ele guarda.
          Os outros três garotos se observaram, e a negativa surgiu de uma isonomia presente nos respectivos olhares:
          - Não, essa não é uma boa ideia. – disse um.
          - Certamente isso acabaria em confusão! – disse o outro.
          - É, Cristiano, dessa vez a sua ideia não foi produtiva... – concluiu ainda um terceiro, que tirou a bola das mãos do líder e se encaminhou com os outros três para o campo. Com a cabeça baixa, Cristiano não havia aceitado completamente a recusa de seus amigos... dirigiu então a sua visão para a casa do sujeito que agora o deixava intrigado: uma casa e um terreno amplos, que haviam sido comprados há pouco tempo. Antes, Arthur vivia em uma residência mais humilde e pagava aluguel. Na mente da criança não se estabelecia ainda um modelo complexo de análise financeira, mas o garoto já conseguia chegar a algumas conclusões... e a incógnita que lhe dominava era bem específica: “Como um sujeito que, aparentemente, não trabalha tem renda para se sustentar?!” novamente se perguntou. E a vontade retornou ao domínio de seu espírito...
          - Vou atrás disso, independente de quanto essa verdade possa me custar! – decidiu-se Cristiano e foi até onde estavam os seus amigos.
          Com o seu semblante sério, chamou a atenção dos outros garotos sem pronunciar qualquer palavra; quando fez as suas declarações, foi ignorado pelo assunto ter sido descoberto. Entristecido, sem forças para retornar à discussão e menos ainda para agir sozinho, o líder aceitou a sua derrota... foi jogar bola com os seus amigos e em questão de pouco tempo já havia se esquecido da vida que outrora quis pesquisar.
          Degustando calmamente o seu chimarrão, o homem começou a reparar à vida alheia diante da visão privilegiada que lhe vinha da sacada de seu lar; após finalizar a sua rodada, entregou a cuia à sua esposa e a sua voz saiu (era então “incontrolável”!...):
          - Esse indivíduo é um tanto quanto diferenciado, e digo isso sem nenhum tipo de má intenção... – gesticulava, não queria ser julgado do modo que julgava. – mas existe alguma coisa nessa história. Não é normal que um homem da idade dele viva isolado de tudo e, o que é pior!, nos ignorando; ele simplesmente faz de conta que não sabe de todas as narrativas que a vizinhança cria sobre o grande mistério que é a sua vida!...
          E a esposa apenas concordava, pois não tinha paciência para expandir qualquer tipo de discussão e/ou diálogo com o homem que estava na sua casa, mas não estava do seu lado. Eram duas ilhas, diferentes de um casal, mas reservavam duas personalidades indiferentes às suas próprias condições: ele falava da vida de todos e ela o ignorava de forma demasiado fria, pois verdadeiramente proposital. E, no final das contas, as crianças e o casal eram uma síntese perfeita daquela vizinhança...
          Arthur terminou o seu serviço e ficou alguns segundos fazendo uma correção severa com os olhos... e tudo estava perfeito. Olhou para o céu, e o anoitecer era quase uma ordem para que ele entrasse em sua casa. Adentrou nos seus aposentos e começou a preparar a sua última refeição do dia. E era sempre a mesma perfeição, até quando resolvia cozinhar!... uma demora e uma diligência doentia, para a janta de um único indivíduo (!...). Finalizou o seu hábito alimentar do dia com uma xícara de chá que foi lentamente saboreada; após, fez o seu exercício físico (era um ao acordar, um após o almoço e mais um antes de dormir) e preparou a sua cama (com o mesmo senso de perfeccionismo que guiava todos os seus atos...). Não estava frio, não estava quente; mas o seu sonho lhe reservou um questionamento novo...
          De súbito, a escuridão e o silêncio de um fechar de olhos noturno se desfez; ainda a noite, carros e pessoas em movimentações indiferentes, e às costas de nosso personagem uma arcaica estação de trem. Na sua mente, um grande acúmulo de trabalho desgastante da semana inteira (era, finalmente, uma sexta-feira!...); e o barulho dos carros, dos transeuntes, da falta de esclarecimento... e a espera por sua esposa. Não saber como estava a sua esposa, a quem aguardava com uma preocupação afetiva; em todos os automóveis que passavam, procurava ansiosamente o veículo dela!... a angústia e o cansaço consumiram os ossos de seu espírito. Acordou no introito do dia, com o susto recebido pelas imagens internas...
          O ar de sua condição lhe foi um acesso à doce liberdade!... pois os problemas e preocupações do resto da humanidade eram demasiado sufocantes... de modo que Arthur começava a louvar a sua própria existência.
          - Que bom que não tenho sentimentos! – disse com grande satisfação.
          E aquela não era a primeira vez que os seus sonhos o fizeram ter asco de algum princípio “humano”. Contrariando as lógicas já estabelecidas nos meus registros, retornarei às partes do sono do personagem (que julgo aqui como universais).
          Na primeira noite que separo para este certame literário, a escuridão modal do sono foi interrompida com uma sensação angustiante de uma queda livre. O mundo inconsciente se utilizou de uma ameaça física para transformar o indivíduo em seu maior inimigo, o medo foi então o seu despertar...
          Mas às vezes (talvez, na maioria dos casos...) o sentido é inverso ao que chegou até esta parte da narrativa. Todas as faltas preenchidas, a anulação completa de todos os defeitos pessoais; um tanto quanto utópico tal parâmetro, mas foi essa a real vivência de um desses filmes que Arthur teve de sua existência em inversão: era um ser perfeito, com ampla admiração por parte de outrem, e havia conquistado um materialismo invejável (apenas a criaturas míopes, é bem verdade...). Arthur era respeitado, adorado, um grande expoente da alta cultura!... tudo isso, e apenas no plano exterior. Nem adentrarei aqui nas discussões existenciais, pois qualquer uma delas sempre alimentava o despertar de um sono insalubre...

          E era sempre o mesmo espectro, o maldito sentimento!... nele estava a escravidão dos indivíduos. O conjunto de normas “inquestionáveis”, o frio realismo que o menosprezava... Arthur tinha consigo a ideologia que até hoje domina as ordens políticas das organizações burocráticas de nosso temp(l)o.

Nenhum comentário:

Postar um comentário