quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Diário íntimo

          “Preciso fugir deste maldito cotidiano!” dizia a mim mesmo quando estava na casa de minha namorada em cada domingo daquele período vulgar (...). Mas o instante me era de pseudoadmiração (diplomacia!...) para com a família em que jamais adentrei: a minha acompanhante era dona de uma personalidade, simplesmente, pueril; a minha sogra tinha um egoísmo que lhe transformava na “dona” da família; e o meu sogro era um velho chato com um amplo repertório de piadas sem graça... era um contexto que só me atraia diante da efígie da jovem por quem estava apaixonado. Vocês sabem, melhor do que eu!, a lógica universal do livre-arbítrio: todos nós estamos no contexto que produzimos. No instante de minha pausa vital, sempre retornavam a mim os espectros do pretérito; isto é, o cotidiano em que matei o meu próprio cotidiano...
          A minha juventude parecia bela, e o meu espírito a deixou passar sem criar qualquer face e/ou sem se formular em atos!... minha existência é um arrastar que nunca superou o meramente trivial. Eu estava sempre em casa, com um ciclo dividido em trabalho burocrático inútil e um arrastar de músculos no “tempo livre” (certas coisas parecem infindáveis!...), e minha imagem me era um acervo finalizado da falta de significado... e hoje o niilismo me fez esquecer-me em qualquer outro campo contrário à simplória fisiologia. Ah, e hoje perceber que caminho por puro modismo!... sempre retorno ao abraço interno de heterônimos mortos e ignoro o que devo fazer: no agora, retornar à narrativa...
          Um convite desagradável me foi apresentado: meu irmão iria se formar no tal do “Ensino Superior” (como se a universidade realmente fosse uma instituição de ensino e aprendizagem...). Sem qualquer desculpa para me desviar de tal encenação, aceitei me dirigir ao circo vulgar... no início, eu pensava que o manicômio dos burocratas fosse um problema nulo; e agora não tenho qualquer dúvida diante de tal afirmação inquestionável (a “racionalidade” de meu tempo se autorridiculariza). É estranho que a humanidade ainda se veja como construtora de qualquer qualidade de vida... mas a escravidão mascarada é aceita pela individualidade de todos. E eu fui para a maldita formatura (!): meus pais estavam do meu lado e meu irmão estava na frente (com uma postura soberana...). Sabem de uma coisa, eu acredito que um dia os homens usarão os seus respectivos cérebros e acabarão com todo o faz de conta que nos rodeia. E então, foi naquela ocasião que a conheci; ela era uma colega de curso de meu irmão. Não gastarei o sagrado tempo de quem me escuta com detalhes físicos dela (os velhos detalhes modais das narrativas de sempre!...), o fato é que a ocasião foi o conhecimento recíproco de um casal; o introito da única relação séria que tive em vida.
          Minhas digressões de agora são o mal-estar exposto que tenho para com o meu próprio certame, e se eu retorno a ele (acreditem!...) é porque percebo alguma utilidade para quem me escutar (pois a engrenagem da humanidade é mera narrativa de consuetudinário!...).
          Pois naquela noite (sempre lembrando que eu ainda tenho uma história!...) marquei um encontro: um passeio, apenas; no instante, apenas a conversa me atraiu (!?...). Vocês realmente acreditam nisso: beijos e abraços, mas só a presença singular da moça me chamou atenção?!... eram tempos de minha loucura (em algum pretérito próximo eu cheguei a ser romântico!...). E, na breve caminhada, meus olhos me saboreavam com os detalhes de minha acompanhante: pele morena, olhos pequenos (uma breve lembrança de sua descendência oriental...), seios pequenos e lábios discretos (agentes portadores de um beijo doce e delicado!...); seus modos de agir apresentavam uma pequena timidez (...) que se unia ao seu charmoso sotaque interiorano. A família de minha ex-namorada era de uma cidade distante, mas que agora o destino aproximava de meu lar... felizmente, éramos distantes por alguns quilômetros (estes que se tornavam quase nada em um passeio de carro). Ela ainda morava com os seus pais (sou onze anos mais velho!...): ao ir visitá-la, conversar um pouco com o meu sogro e a minha sogra era um paralelo sem fuga. E o tempo trouxe-me à rotina, e ela me deixou no introito desta história...
          Vislumbrava os três excêntricos e não conseguia presenciar-me para além de minha prisão (e a cela era cada vez mais apertada!...). Era um conjunto do desejo de muitos dos meus semelhantes: a união de duas famílias parecidas, um casal que poderia trazer ao mundo belas crianças!... a perfeição é derrotada, e o seu maior (e único!) algoz é o tradicionalismo (espectro cego, sem racionalidade por ser alheio ao humano). Tudo iniciou-se no modal da repetição, e o fato de ser igual era o paralelo que eu deveria matar!...
          Na última noite em que dormimos juntos, ela me abraçou e começou a falar sobre o nosso futuro filho... e o desejo de romper com o ciclo me surgiu como fera indomável. Que dizer: ser pai e carregar a responsabilidade de ser o principal educador de uma vida?! não, realmente eu estava desprovido de tamanho poder. E a fraqueza me fez ignorar qualquer sensatez...
          - Acabou! o nosso relacionamento acabou. – disse a minha amada e fui embora, sem nenhuma cerimônia e nenhuma explicação. Sensibilizei-me para o final de qualquer enredo, minha vergonha me fez despistar-me de minha família e sua continuação...
          Peguei a estrada, e me direcionei ao caminho mais longo da passagem de concreto... estava em uma localidade distante, e apenas um fator conseguia saciar ainda meu sangue (supostamente) quente: ali ninguém conhecia a minha história. Diante de meu exterior, consegui adquirir um pequeno apartamento em uma cidade demasiado extensa (!). Um emprego mediano no comércio foi mera questão de tempo... e era esse o meu resumo vital desta parte da narrativa: durante o dia, o passar do tempo na correria irracional da ganância pueril da aquisição fria de papel supérfluo; e à noite, após me alimentar de qualquer maneira e de modo forçado, a insônia surge diante da efígie completa de meus demônios do pretérito.
          Sem conseguir ar respirável na minha personificação exata de fuga, fitei em uma madrugada qualquer (estúpida por ser análoga a todas as outras!...) duas ferramentas simplórias, as duas únicas que me restaram: o papel e a caneta. Minha produção se tornou corolário em linhas demasiado tortas... produzi apenas frases pomposas diante do léxico escrito e arquiteturas expostas em frases (aparentemente) sem sentido. E o vício se ampliou, e era a metade de uma dicotomia bélica: ou era o meu escrito, ou era o espectro de meu autorretrato...
          O hábito e o cotidiano, com o passar do tempo, se uniram de forma assustadora; como sou um péssimo detalhista, finalizarei este certame com uma oratória sucinta. A agonia de minhas apresentações reais (a escrita e o meu pensar!...) me fez perder o equilíbrio mental... e a ordem de meu itinerário era o mesmo princípio (no seu introito, desenvolvimento e final): deveria acabar imediatamente a minha existência. Os meus músculos se enfraqueceram e os dias me eram cada vez mais sufocantes!...
          Sair da presença de minha família e desistir de ampliá-la foi um suicídio interno... e o meu corpo era apenas uma apresentação modal. Faltava-me um detalhe: a coragem!...
          Sempre costumava sair para esquecer tudo,... e sempre parava, no meio do percurso, para conversar (brevemente!) com qualquer cidadão; e chegou então um dia decisivo: passei pela rua, olhei para todos os cantos e ninguém me dirigiu o olhar (estava fixado em algo nulo, totalmente dispensável!...). Adentrei no meu apartamento e pude, enfim, perceber o nada que me restava: uma carreira de sucesso no comércio, uma estrutura financeira invejável e alguns rabiscos excêntricos... e a ausência de minha amada, verdadeiramente, foi sentida por mim. Uma borrasca sentimental, que eu jamais tivera anteriormente, se apoderou de minha maior frustração... minha idiossincrasia era uma estrada sem volta de ignomínia... desesperado, no meio de um ciclo fechado, uma paisagem vazia me trouxe à revolta: os rabiscos vulgares, poesias e contos pueris (paralelos expostos, comprovações concretas de minha loucura!...). Ser poeta, ter sempre gravado os defeitos internos! uma conformação infeliz de um humano demasiado e, ao mesmo tempo, desprovido de existência. Ser poeta! não, não existia qualquer lógica e/ou salubridade em tal arquitetura. Restava-me um recurso digno: me livrar do que mais me sufocava...
          Acordei tarde na manhã seguinte e senti uma dor em todo o corpo (fraqueza estranha por falta de significado...). Consegui, apenas!, lavar o rosto... e novamente fitei o meu câncer: os meus escritos estavam reunidos sobre a mesa. Eram grandiosos, de modo que eu não conseguia mais dominá-los!... e a janela estava fechada: abri-a prontamente. Sufocado, os meus escritos escapavam de minhas mãos; totalmente desajeitado (o desequilíbrio e o agir involuntário dominavam o meu corpo!), peguei as folhas e sem nenhuma alternativa as joguei para fora de meu lar, deixei-as à disposição do mundo exterior!...
          Alívio foi o que eu senti, mas foi meramente momentâneo... como me julgariam os meus leitores (a minoria, pois a maioria iria deveras me ignorar!...)?! certamente, ninguém pararia para refletir sobre algo que fosse além de minha personalidade (e eu não sei se não faria o mesmo...). E foi quando eu realmente abri os meus olhos: me ergui da cama de forma abrupta e, com o susto, a minha esposa fixou o seu olhar sobre mim. Um peso, enfim!, saiu de minhas costas; e eu rompi o silêncio com uma frase, no mínimo, estranha:
          - Que bom que sou um sujeito normal, ao invés de um poeta solitário!

          Nada explica o semblante de minha mulher após eu ter proclamado tais palavras.

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