Diário íntimo
“Preciso fugir deste maldito
cotidiano!” dizia a mim mesmo quando estava na casa de minha namorada em cada
domingo daquele período vulgar (...). Mas o instante me era de pseudoadmiração
(diplomacia!...) para com a família em que jamais adentrei: a minha
acompanhante era dona de uma personalidade, simplesmente, pueril; a minha sogra
tinha um egoísmo que lhe transformava na “dona” da família; e o meu sogro era
um velho chato com um amplo repertório de piadas sem graça... era um contexto
que só me atraia diante da efígie da jovem por quem estava apaixonado. Vocês
sabem, melhor do que eu!, a lógica universal do livre-arbítrio: todos nós
estamos no contexto que produzimos. No instante de minha pausa vital, sempre
retornavam a mim os espectros do pretérito; isto é, o cotidiano em que matei o
meu próprio cotidiano...
A minha juventude parecia bela, e o
meu espírito a deixou passar sem criar qualquer face e/ou sem se formular em
atos!... minha existência é um arrastar que nunca superou o meramente trivial.
Eu estava sempre em casa, com um ciclo dividido em trabalho burocrático inútil
e um arrastar de músculos no “tempo livre” (certas coisas parecem
infindáveis!...), e minha imagem me era um acervo finalizado da falta de
significado... e hoje o niilismo me fez esquecer-me em qualquer outro campo
contrário à simplória fisiologia. Ah, e hoje perceber que caminho por puro
modismo!... sempre retorno ao abraço interno de heterônimos mortos e ignoro o
que devo fazer: no agora, retornar à narrativa...
Um convite desagradável me foi
apresentado: meu irmão iria se formar no tal do “Ensino Superior” (como se a
universidade realmente fosse uma instituição de ensino e aprendizagem...). Sem
qualquer desculpa para me desviar de tal encenação, aceitei me dirigir ao circo
vulgar... no início, eu pensava que o manicômio dos burocratas fosse um
problema nulo; e agora não tenho qualquer dúvida diante de tal afirmação
inquestionável (a “racionalidade” de meu tempo se autorridiculariza). É
estranho que a humanidade ainda se veja como construtora de qualquer qualidade
de vida... mas a escravidão mascarada é aceita pela individualidade de todos. E
eu fui para a maldita formatura (!): meus pais estavam do meu lado e meu irmão
estava na frente (com uma postura soberana...). Sabem de uma coisa, eu acredito
que um dia os homens usarão os seus respectivos cérebros e acabarão com todo o
faz de conta que nos rodeia. E então, foi naquela ocasião que a conheci; ela
era uma colega de curso de meu irmão. Não gastarei o sagrado tempo de quem me
escuta com detalhes físicos dela (os velhos detalhes modais das narrativas de
sempre!...), o fato é que a ocasião foi o conhecimento recíproco de um casal; o
introito da única relação séria que tive em vida.
Minhas digressões de agora são o
mal-estar exposto que tenho para com o meu próprio certame, e se eu retorno a
ele (acreditem!...) é porque percebo alguma utilidade para quem me escutar
(pois a engrenagem da humanidade é mera narrativa de consuetudinário!...).
Pois naquela noite (sempre lembrando
que eu ainda tenho uma história!...) marquei um encontro: um passeio, apenas;
no instante, apenas a conversa me atraiu (!?...). Vocês realmente acreditam
nisso: beijos e abraços, mas só a presença singular da moça me chamou atenção?!...
eram tempos de minha loucura (em algum pretérito próximo eu cheguei a ser
romântico!...). E, na breve caminhada, meus olhos me saboreavam com os detalhes
de minha acompanhante: pele morena, olhos pequenos (uma breve lembrança de sua
descendência oriental...), seios pequenos e lábios discretos (agentes
portadores de um beijo doce e delicado!...); seus modos de agir apresentavam
uma pequena timidez (...) que se unia ao seu charmoso sotaque interiorano. A
família de minha ex-namorada era de uma cidade distante, mas que agora o
destino aproximava de meu lar... felizmente, éramos distantes por alguns
quilômetros (estes que se tornavam quase nada em um passeio de carro). Ela
ainda morava com os seus pais (sou onze anos mais velho!...): ao ir visitá-la,
conversar um pouco com o meu sogro e a minha sogra era um paralelo sem fuga. E
o tempo trouxe-me à rotina, e ela me deixou no introito desta história...
Vislumbrava os três excêntricos e não
conseguia presenciar-me para além de minha prisão (e a cela era cada vez mais
apertada!...). Era um conjunto do desejo de muitos dos meus semelhantes: a
união de duas famílias parecidas, um casal que poderia trazer ao mundo belas
crianças!... a perfeição é derrotada, e o seu maior (e único!) algoz é o tradicionalismo
(espectro cego, sem racionalidade por ser alheio ao humano). Tudo iniciou-se no
modal da repetição, e o fato de ser igual era o paralelo que eu deveria
matar!...
Na última noite em que dormimos
juntos, ela me abraçou e começou a falar sobre o nosso futuro filho... e o
desejo de romper com o ciclo me surgiu como fera indomável. Que dizer: ser pai
e carregar a responsabilidade de ser o principal educador de uma vida?! não,
realmente eu estava desprovido de tamanho poder. E a fraqueza me fez ignorar
qualquer sensatez...
- Acabou! o nosso relacionamento
acabou. – disse a minha amada e fui embora, sem nenhuma cerimônia e nenhuma
explicação. Sensibilizei-me para o final de qualquer enredo, minha vergonha me
fez despistar-me de minha família e sua continuação...
Peguei a estrada, e me direcionei ao
caminho mais longo da passagem de concreto... estava em uma localidade
distante, e apenas um fator conseguia saciar ainda meu sangue (supostamente)
quente: ali ninguém conhecia a minha história. Diante de meu exterior, consegui
adquirir um pequeno apartamento em uma cidade demasiado extensa (!). Um emprego
mediano no comércio foi mera questão de tempo... e era esse o meu resumo vital
desta parte da narrativa: durante o dia, o passar do tempo na correria
irracional da ganância pueril da aquisição fria de papel supérfluo; e à noite,
após me alimentar de qualquer maneira e de modo forçado, a insônia surge diante
da efígie completa de meus demônios do pretérito.
Sem conseguir ar respirável na minha
personificação exata de fuga, fitei em uma madrugada qualquer (estúpida por ser
análoga a todas as outras!...) duas ferramentas simplórias, as duas únicas que
me restaram: o papel e a caneta. Minha produção se tornou corolário em linhas
demasiado tortas... produzi apenas frases pomposas diante do léxico escrito e
arquiteturas expostas em frases (aparentemente) sem sentido. E o vício se
ampliou, e era a metade de uma dicotomia bélica: ou era o meu escrito, ou era o
espectro de meu autorretrato...
O hábito e o cotidiano, com o passar
do tempo, se uniram de forma assustadora; como sou um péssimo detalhista,
finalizarei este certame com uma oratória sucinta. A agonia de minhas
apresentações reais (a escrita e o meu pensar!...) me fez perder o equilíbrio
mental... e a ordem de meu itinerário era o mesmo princípio (no seu introito,
desenvolvimento e final): deveria acabar imediatamente a minha existência. Os
meus músculos se enfraqueceram e os dias me eram cada vez mais sufocantes!...
Sair da presença de minha família e
desistir de ampliá-la foi um suicídio interno... e o meu corpo era apenas uma
apresentação modal. Faltava-me um detalhe: a coragem!...
Sempre costumava sair para esquecer
tudo,... e sempre parava, no meio do percurso, para conversar (brevemente!) com
qualquer cidadão; e chegou então um dia decisivo: passei pela rua, olhei para
todos os cantos e ninguém me dirigiu o olhar (estava fixado em algo nulo,
totalmente dispensável!...). Adentrei no meu apartamento e pude, enfim,
perceber o nada que me restava: uma carreira de sucesso no comércio, uma
estrutura financeira invejável e alguns rabiscos excêntricos... e a ausência de
minha amada, verdadeiramente, foi sentida por mim. Uma borrasca sentimental,
que eu jamais tivera anteriormente, se apoderou de minha maior frustração...
minha idiossincrasia era uma estrada sem volta de ignomínia... desesperado, no
meio de um ciclo fechado, uma paisagem vazia me trouxe à revolta: os rabiscos
vulgares, poesias e contos pueris (paralelos expostos, comprovações concretas
de minha loucura!...). Ser poeta, ter sempre gravado os defeitos internos! uma
conformação infeliz de um humano demasiado e, ao mesmo tempo, desprovido de
existência. Ser poeta! não, não existia qualquer lógica e/ou salubridade em tal
arquitetura. Restava-me um recurso digno: me livrar do que mais me sufocava...
Acordei tarde na manhã seguinte e
senti uma dor em todo o corpo (fraqueza estranha por falta de significado...).
Consegui, apenas!, lavar o rosto... e novamente fitei o meu câncer: os meus
escritos estavam reunidos sobre a mesa. Eram grandiosos, de modo que eu não conseguia
mais dominá-los!... e a janela estava fechada: abri-a prontamente. Sufocado, os
meus escritos escapavam de minhas mãos; totalmente desajeitado (o desequilíbrio
e o agir involuntário dominavam o meu corpo!), peguei as folhas e sem nenhuma
alternativa as joguei para fora de meu lar, deixei-as à disposição do mundo
exterior!...
Alívio foi o que eu senti, mas foi
meramente momentâneo... como me julgariam os meus leitores (a minoria, pois a
maioria iria deveras me ignorar!...)?! certamente, ninguém pararia para
refletir sobre algo que fosse além de minha personalidade (e eu não sei se não
faria o mesmo...). E foi quando eu realmente abri os meus olhos: me ergui da
cama de forma abrupta e, com o susto, a minha esposa fixou o seu olhar sobre mim.
Um peso, enfim!, saiu de minhas costas; e eu rompi o silêncio com uma frase, no
mínimo, estranha:
- Que bom que sou um sujeito normal,
ao invés de um poeta solitário!
Nada explica o semblante de minha
mulher após eu ter proclamado tais palavras.
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